20 Anos da Maior Tragédia Ambiental do Estado da Paraíba: Incidente no brejo paraibano matou cinco pessoas e deixou mais de 3.000 desabrigados

“Nem a mamadeira do meu filho deu tempo de pegar. Tinha um enxoval recém-feito, tirei ele de casa só de fralda”, relembra Luzirene Farias de Albuquerque, moradora de Alagoa Grande e uma das vítimas do rompimento da barragem de Camará, que ocorreu há exatos 20 anos, em 17 de junho de 2004. Ela, que viveu momentos de terror na noite em que as águas invadiram as ruas de cidades do Brejo paraibano, ainda hoje se emociona ao relembrar das cenas, quando perdeu fotos do seu pai, que já havia morrido, e quase perdia seu filho.

Localizada no município de Alagoa Grande, região do Brejo paraibano, a Barragem de Camará teve sua construção iniciada no ano 2000 e foi inaugurada em 2002. No início da noite de 17 de junho de 2004, o reservatório se rompeu e a força das águas causou destruição por onde passou. Além de devastar propriedades urbanas e rurais, acabou também com sonhos e memórias dos moradores. As águas inundaram as ruas das cidades de Alagoa Grande, Areia e Mulungu. Cinco pessoas morreram e 3 mil ficaram desabrigadas.

O filho de Luzirene, Fabrizzio Albuquerque, agora tem 20 anos. Na época, tinha apenas oito meses. Ele estava deitado na cama com a mãe e a avó, dona Edna, quando um vizinho chegou alarmando: “Dona Edna, dona Edna, saia de dentro de casa que a barragem estourou!”.

A princípio, dona Edna não acreditou. “Eu disse: ‘onde essa barragem?’ Porque assim, na minha cabeça, como iria atingir aqui perto?”, relembra Edna Albuquerque, a senhora que atualmente tem 74 anos e até hoje se assombra com o risco de, naquela noite, ter perdido além da sua casa, seu neto como uma vítima do desastre.

Mesmo tendo desconfiado da informação num primeiro momento, quando outros vizinhos também chegaram, alarmando que as águas estavam tomando as ruas, dona Edna e sua filha, Luzirene, foram tomadas pelo desespero. Pegaram uma muda de roupa, cada, tentaram colocar alguns objetos na parte de cima das estantes, e, por pouco, não deixaram Fabrizzio para trás.

“Minha mãe colocou Fabrizzio no berço, enquanto eu tentava colocar algumas coisas em cima das estantes. Depois que eu fechei a casa, foi que vi: ‘cadê Fabrizzio? Volta que o menino tá dentro de casa!’ Voltamos, abrimos tudo novamente e, nisso, as águas já estavam subindo. Mas conseguimos salvar ele. Foi um livramento”, relembra Luzirene, se emocionando.

Ela morava na rua conhecida na cidade como Rua do Rio, que fica a 15 quilômetros da barragem de Camará. Embora a barragem fique em Alagoa Nova, as águas do rompimento da barragem inundaram também as ruas das cidades de Alagoa Grande, Areia e Mulungu.

As águas chegaram a até 1,80 metro dentro da casa de dona Edna. Luzirene tinha acabado de dar início a uma nova sede da escola que é proprietária, que embora ficasse a apenas 900 metros da casa da mãe, como ficava após a ponte da cidade sofreu menos os impactos da inundação.

Acabou que foi a escola que, por um bom tempo, serviu de abrigo para família. “Não tinha casa para alugar na cidade, tanto que era gente desabrigada. De uma média de 250 alunos que a gente tinha, as famílias de 105 deles foram atingidas”, relembra. Abrigada primeiramente em uma das salas de aula da escola, no primeiro andar da escola, Luzirene resolveu, depois, fazer de duas salas um pequeno apartamento, onde morou por cinco anos, até conseguir comprar sua própria casa.

“O Estado conseguiu reformar a casa da minha mãe, mas nunca mais foi a mesma coisa. E até hoje a gente não conseguiu superar de verdade. A escola cresceu, a gente conseguiu refazer a vida do ponto de vista material, mas tem coisa que não tem conserto. Até hoje, quando dá uma chuva mais forte, vem o medo, o receio que a barragem estoure, alguma coisa aconteça, tudo inunde”, conta. Já dona Edna, mãe de Luzirene, ficou com trauma das noites. “Toda noite eu me pego com Deus pra que nada aconteça”, afirma.

Além das perdas materiais, há, também, as perdas afetivas, mesmo para quem não teve entes entre os que morreram. Fotos e objetos que carregavam a história da família, por exemplo, foram levados pelas águas. “Perdemos as fotos da nossa infância, do nosso pai que já tinha morrido. A gente sabe que tudo é difícil de se reconstruir, mas tem coisa que não tem nem como tentar”, conta Luzirene.

Proprietário de engenho perdeu mais de R$ 120 mil

Aquiles Leal, proprietário do Engenho Vitória, localizado na zona rural de Alagoa Nova, foi mais um dos que viu seu ganha pão ser destruído pelas águas. Com o rompimento da barragem, a infraestrutura do engenho e da empresa de água mineral que mantinha foi devastada pela inundação, que destruiu o maquinário da destilaria de cachaça e parte dos poços de água.

O prejuízo, segundo ele, foi de cerca de R$ 120 mil. Além da falta de energia, o local ficou também por nove dias sem abastecimento de água. “Eu vinha tentando sair de uma situação financeira muito difícil, na época, mas parecia que ia dar certo. Reestruturei o engenho no dia 10 de janeiro de 2004, comecei a moer a cana e, com isso, a pagar as contas. Já fazia dez anos que a gente tava sem carro, andava de moto emprestada, de cavalo. Quando chegou no mês de junho, eu disse a minha esposa: ‘Deisy, se Deus quiser a gente passa mais 30 dias e vai numa agência comprar um carro”, lembra.

Os meses que se seguiram, porém, saíram bem diferentes do imaginado. “Eu tinha acabado de pagar os agiotas que tava devendo, achei que ia começar a respirar, e veio o rompimento no dia 17 de junho”, lembra, lamentando.

O engenho data do século XIX, e já está na família de Aquiles há cinco gerações. Além do prejuízo financeiro, ele viu, também, com o desastre, um legado da família quase ser destruído pelas águas. “De uma hora para outra você se vê no fundo do poço e sem ter onde se arregar”.

O local mantinha 30 funcionários na época. Alguns tiveram que ser demitidos, outros foram se mantendo em uma relação de parceria com o proprietário. “Cada um foi se ajudando como pôde e de pouquinho em pouquinho, até pedindo empréstimo a quem eu tinha acabado de pagar, a gente foi se reerguendo”, lembra.

A indenização saiu apenas um ano e meio após o desastre, período no qual Aquiles viu suas dívidas triplicarem de valor, devido aos juros cobrados pelos bancos. Mesmo assim, somente em 2010, seis anos depois do desastre, Aquiles conseguiu se reestruturar. Atualmente, o engenho mantém cerca de 80 funcionários. Quando questionado se em algum momento pensou em desistir, porém, ele é categórico. “Eu sou apaixonado pelo mato. Sou um homem da terra. Nunca pensei em desistir. É a tradição da minha família que eu faço questão de honrar”.

 

Atuação do poder público

Os processos de indenizações aos atingidos e de responsabilização pelo rompimento da barragem foram ajuizados pelo Ministério Público. No âmbito estadual, o procurador José Raimundo de Lima, hoje aposentado, acompanhou o processo até sua conclusão. “O rompimento de uma barragem causa vários problemas: problemas cíveis e problemas criminais. Os criminais são as mortes das pessoas em decorrência do acidente, e nos problemas cíveis se apura a responsabilidade e o direito às indenizações que as pessoas têm”, explica o procurador.

Segundo ele, assim que o fato ocorreu, o Ministério Público da Paraíba designou uma comissão e, depois, apareceu a necessidade de se fazer um trabalho em conjunto com o Ministério Público Federal. Durante a apuração, foram feitas oitivas, análise de laudos e realizada ainda a contratação de especialistas em barragens da Universidade de São Paulo (USP) para se chegar a um parecer.

“A ideia era ouvir especialistas neutros. Chamamos dois grandes especialistas da área de barragem da USP. Vieram à Paraíba, fizeram as análises, foram a Camará, analisaram item por item e nos ofereceram o parecer”, explica.

“Quando começamos a ouvir as partes, começamos a ver algumas divergências de posições. E nós tínhamos que ver realmente em sentido prático quais seriam as causas do rompimento. Foi então que nós chegamos à conclusão que era necessário ter um laudo técnico, além das plantas e dos laudos apresentados por ambos os governos da época, o que construiu a barragem e o que fazia a manutenção na época do rompimento”, conta o procurador.

O procurador aponta ainda que, devido à complexidade do caso, foi necessário realizar um trabalho cauteloso. A conclusão a que chegou o parecer do Ministério Público foi de que a causa do rompimento da barragem seria por conta de falhas na manutenção nos chamados furos de alívio – furos que são feitos na barragem para aliviar a pressão de água no paredão.

“Esses vários furos que haviam em toda extensão do paredão estavam entupidos e isso causou um deslizamento em pedras na parte profunda da barragem. Essas pedras pesavam em torno de 600 toneladas. Nesse deslizamento das pedras, foi aberto um espaço entre elas e, aí houve o rompimento”, relembra.

Com o parecer em mãos, o MPPB entrou com as ações de ressarcimento de danos e de responsabilidade civil e criminal na Justiça Federal. A última decisão da Justiça em relação ao caso foi do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2017, que negou um recurso do Ministério Público Federal (MPF) e manteve inalterada a decisão que diz que o rompimento da barragem de Camará, foi por falta de manutenção e não por erro de execução de projeto na construção.

Em decisão do Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5), ficou definido que a tragédia aconteceu, principalmente, por omissão, pelo fato da obra não ter sido observada e monitorada após a construção, conforme recomendado. De acordo com documento, mesmo que uma falha geológica tivesse sido identificada, esse não foi o motivo do rompimento.

Em relação às indenizações, algumas ações seguem, ainda hoje, na Justiça. No caso de dona Edna, por exemplo, cuja casa na rua do Rio em Alagoa Grande foi inundada pelas águas, ela optou em 2023 por receber a indenização, mesmo com o valor muito mais baixo que o previsto. A indenização recebida, 20 anos depois, foi de R$ 13 mil. “Melhor receber os R$ 13 mil que nada”, conta sua filha, que também recebeu uma indenização do mesmo valor. Elas calculam um prejuízo de R$ 40 mil ao todo. O dinheiro foi usado para fazer melhorias nas suas casas e para compra de medicamentos hoje usados pela idosa.

 

Guardião da barragem

José Avelino, conhecido como “seu Preá”, é como um guardião da barragem de Camará. Mora em um sítio, hoje em dia ao lado do paredão. Na época em que a barragem foi construída, ele morava exatamente no local em que o paredão foi levantado. Nasceu e se criou por ali. Seu pai comprou a propriedade mais ou menos na década de 1940, pelo que lembra. Em 2001, o Estado desapropriou suas terras para dar início à construção de Camará. As dele e as de mais de 300 famílias. A barragem começou a ser construída em 2002 e foi inaugurada em 2004.

No dia em que a barragem estourou, ele já desconfiava que o pior iria acontecer. Mesmo assim, foi difícil de acreditar. “Eu já vinha prestando atenção há muito tempo, mas os técnicos diziam que barragem vazava mesmo. No dia que ela rompeu, que eu vi que não era só um vazamento. Saí andando, a pé, coisa de meia hora, até Alagoa Nova, pra avisar que o negócio era sério”, relembra.

Seu Avelino chegou a ligar para autoridades do governo estadual em João Pessoa e para um quartel em Alagoa Grande. Quem atendeu o telefonema achou que era um trote. Mas ele foi incisivo. “Se o senhor não colocar um carro de som na rua avisando o tanto de água que vem por aí, vai morrer muita gente!”. Oito dias depois do acidente, as pessoas que tinham desconfiado da informação voltaram a Camará para agradecê-lo pelo aviso. Graças ao guardião, muitas vidas foram salvas.

Isso, no entanto, não sem muita dificuldade. Acontece que, na época, não era comum ainda o uso de telefone celular. Ou seja, comunicação só pelo telefone fixo. Alguns sobreviventes, mais tarde, relataram que souberam da notícia por meio das rádios locais. Mas o que funcionou mesmo foi o boca a boca: um vizinho falando ao outro, todo mundo se ajudando.

“Quando eu voltei pra casa, depois de ter ido avisar na cidade que uma desgraça tava para acontecer, comecei a ouvir uma chiadeira. Depois, era uns estrondos – o barulho das pedras se chocando. Pior que tava tudo no escuro, aí não dava para entender direito o que tava acontecendo. Como minha casa, nessa época, já ficava do outro lado, não sofreu muito, mas pra falar a verdade, pra mim foi como a perda de uma pessoa querida. Eu convivia há tanto tempo ali, com a barragem, que ver ela indo embora, sem poder fazer nada, foi desesperador. Sem falar no estrago que fez na região, o tanto de gente que sofreu”, conta Avelino.

A cidade ficou totalmente no escuro. Segundo ele, foi quase uma semana sem comunicação. A situação se igualava a das piores catástrofes que, quando alguém vê nos noticiários, pensa que jamais irá acontecer tão perto de si. A força das águas saiu carregando tudo que encontrava pela frente: postes elétricos, árvores e objetos. Deixava para trás além de muita lama um tremendo desespero e a sensação de desamparo.

O procurador do Ministério Público Federal, Duciran Farena, que na época atuou à frente do órgão no caso da barragem de Camará, destaca os conflitos políticos existentes no estado como um dos intensificadores da situação que ele descreve como “de abandono” em que ficaram as vítimas do acidente. De acordo com ele, seis meses após o episódio ainda não tinham sido tomadas medidas efetivas por parte do Estado, por isso foi preciso uma atuação ainda mais forte do MPPB e do MPF.

“O então governo à época tratou de responsabilizar inteiramente o governo anterior. Ficou essa discussão e, com isso, esqueceram-se de buscar quem de fato era responsável e de prestar a assistência a quem precisava”, relembra, fazendo referência ao fato de que a barragem foi construída na gestão do governador José Maranhão e rompeu durante o governo de Cássio Cunha Lima.

Segundo ele, na época o MPF realizou, junto ao MPPB, uma audiência pública para ouvir as vítimas e os relatos mostravam uma situação de abandono total. “Comunidades isoladas, casas destruídas, um descaso completo”, diz. A ação civil pública de autoria do MPF pedia a apuração das causas do rompimento da barragem e seus responsáveis, acusando o governo do e as construtoras.

 

Nova Camará

Em 2016, 12 anos após o rompimento que lançou um extenso volume de água nas ruas, destruiu centenas de casas e deixou milhares de pessoas desabrigadas, o governo da Paraíba, reinaugurou a barragem. Em uma tentativa de apagar as tristes memórias causadas pelo acidente, a barragem passou a se chamar de Nova Camará, inclusive nas placas de localização espalhadas pelo caminho. As cicatrizes de quem viveu a história, no entanto, continuam em carne viva, mesmo 20 anos após aquela noite.

A fiscalização atualmente da barragem é por conta Agência Executiva de Gestão das Águas (Aesa), ligada à Secretaria Estadual de Recursos Hídricos. Segundo o gerente de operação de mananciais, João Pedro Chaves, um relatório de monitoramento é feito a cada três meses, e a fiscalização é realizada semestralmente. “No ano passado foram feitas análises extras para investigar os possíveis indícios de vazamento na barragem e reparos foram feitos dentro de um cronograma de manutenção”, afirma.

Em 2023, duas anomalias foram registradas: um gotejamento em uma parte tubular da barragem e, ainda, um deslocamento da parede central da parte que tem contato com a água. De acordo com João Pedro Chaves, no entanto, o monitoramento constante que é feito assegura que a barragem não corre risco de problemas futuros. “A gente tem uma equipe de fiscalização e essa equipe faz visitas constantes à barragem”, reitera o representante da Aesa.

Quem viveu os momentos de terror da noite do dia 17 de junho de 2004, porém, não fica tranquilo tão fácil. No inverno, quando as chuvas ficam mais fortes e o manancial começa a encher, por exemplo, dona Edna, mãe de Luzirene, chega a passar dias na casa da filha, com medo que algo semelhante a 2004 aconteça.

Aquiles Leal, por outro lado, proprietário do Engenho Vitória até hoje lembra do quanto sofreu para reconstruir seu negócio. Já José Avelino, o guardião de Camará, continua firma na sua missão. “Qualquer chuvinha que aconteça, o pessoal de Alagoa Grande fica com medo. Mas eu continuo de olho e qualquer coisa, pode ter certeza, vou logo avisar, seja quem for”, diz.

Por: Redação G1

Bruno Aldrin Aldrin

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