Denuncia! A cada 20 minutos, uma criança ou adolescente dá à luz um bebê no Brasil
Em uma carta confidencial enviada ao governo brasileiro, relatoras da ONU denunciaram uma ofensiva contra o aborto legal, nas condições previstas pela legislação brasileira.
O documento, obtido pelo UOL, foi enviado para as autoridades em Brasília ainda em abril e foi assinado pelas relatoras Dorothy Estrada-Tanck, Irene Khan, Tlaleng Mofokeng, Mary Lawlor e Alice Jill Edwards.
No centro da denúncia está o caso de três jornalistas brasileiras que, em junho de 2022, publicaram reportagens sobre a dificuldade de uma menina que havia sido estuprada em conseguir realizar um aborto legal. Após as reportagens, Paula Guimarães (Portal Catarinas), Bruna de Lara and Tatiana Dias (The Intercept) passaram a ser alvo de um assédio judicial e moral pela denúncia realizada.
Elas publicaram, na época, detalhes sobre como a pressão havia sido colocada sobre a criança vítima do estupro e de sua família para que o aborto não fosse realizado. Para as relatoras da ONU, os ataques contra as jornalistas fazem parte de um padrão mais amplo e preocupam. É uma tentativa de grupos ultraconservadores de impedir que a lei brasileira seja cumprida e que essas meninas tenham acesso aos serviços de saúde sexual e reprodutiva.
Segundo as relatoras, a ONU recebeu informações de que:
De 2010 a 2019, 252.786 meninas de 10 a 14 anos deram à luz outras crianças no Brasil, o que representa um parto a cada 20 minutos nesse período.
Em 2018, mulheres e meninas afrodescendentes foram 65% do total de vítimas de mortes maternas — estima-se que 92% do total de mortes maternas eram evitáveis.
Crianças de 0 a 13 anos foram 61,3% das vítimas do número total de estupros no Brasil em 2021;
Entre as vítimas de estupro no país em 2021, 52,2% eram afrodescendentes e 88,2% eram mulheres.
Os dados foram coletados pela Rede Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos do Paraná e divulgados em 2021 pelo Portal Catarinas.
Segundo a carta, “organizações da sociedade civil relataram uma redução de 45% na disponibilidade de serviços de aborto legal no Brasil durante a pandemia da covid-19”.
“De acordo com a Pesquisa Nacional de Aborto (PNA 2021), meio milhão de abortos é realizado no Brasil a cada ano, e 43% das mulheres que se submeteram ao aborto precisaram ser hospitalizadas devido a complicações de saúde.”
Os dados da carta ainda apontam que:
Uma em cada sete brasileiras, com 40 anos ou mais, já fez pelo menos um aborto na vida;
52% dos abortos ocorreram quando essas mulheres tinham menos de 19 anos;
Um quinto das mulheres já fez mais de um aborto e, entre esse grupo, 74% são mulheres afrodescendentes.
Negras são as mais afetadas
Para as relatoras, fica evidenciado que mulheres e meninas negras são as mais afetadas pelos esforços para restringir o acesso ao aborto e à saúde e a direitos sexuais e reprodutivos no Brasil.
Na carta, os especialistas alertam para a “séria preocupação com as alegações que, se confirmadas, mostrariam uma tendência persistente de violência contra mulheres e meninas que não têm acesso ao seu direito à saúde reprodutiva no Brasil por conta de muitas barreiras sistêmicas, que parecem afetar especialmente mulheres e meninas afrodescendentes”.
Um dos pontos denunciados como “extremamente preocupante” é a remoção de meninas grávidas, que estão em situação vulnerável devido à sua idade e circunstâncias, e sua colocação em abrigos separados de seus pais ou responsáveis e familiares.
Isso parece estar em desacordo com os melhores interesses da criança, seu direito à vida familiar e à liberdade e segurança pessoal, sem a devida supervisão judicial. O simples fato de estar grávida e buscar um aborto não é motivo para remover ou separar uma menina de seus pais, responsáveis ou familiares.”Relatoras da ONU, em carta enviada ao governo Lula
Alerta para situação das jornalistas
Parte da carta ainda faz um alerta sobre a situação das três jornalistas, diante de retaliações e intimidações. Também estamos preocupados com o profundo efeito inibidor que a investigação judicial sobre as três jornalistas que relataram o caso pode causar em outros profissionais da mídia que relatam questões relacionadas a direitos humanos.”
“Estamos particularmente preocupados com o fato de essas alegações constituírem uma violação dos direitos fundamentais da mulher à igualdade, à integridade física e psicológica e à privacidade. Continuamos preocupados com a situação de mulheres e meninas cujo acesso aos direitos de saúde sexual e reprodutiva é restrito.”
Para as relatoras da ONU, a situação é uma violação das leis nacionais.
“No contexto dos direitos à saúde sexual e reprodutiva, reiteramos nossas preocupações de que, se os fatos forem confirmados, tais direitos continuam a ser violados, apesar da existência do artigo 128 do Código Penal Brasileiro, que autoriza a interrupção legal da gravidez quando ‘não há outro meio de salvar a vida da gestante, e se a gravidez resulta de estupro'”.
Estigma do aborto
Segundo elas, há preocupação com o fato de uma menina vítima de estupro ter enfrentado obstáculos para ter acesso a uma interrupção legal da gravidez — o que reflete a discriminação que mulheres e meninas frequentemente sofrem com relação ao acesso a serviços de saúde.
As restrições ao acesso ao aborto seguro, um serviço de saúde reprodutiva predominantemente exigido por mulheres e meninas, são discriminatórias. A sujeição de mulheres e meninas a barreiras desnecessárias ao atendimento essencial à saúde reprodutiva é um tratamento degradante e alimenta o estigma do aborto, o que, por sua vez, contribui para um ambiente proibitivo e punitivo repleto de intimidação e violência.”
“Em particular, negar o aborto a mulheres e meninas grávidas resultantes de estupro e incesto corre o risco de exacerbar seu trauma, bem como seu sofrimento físico e mental, sujeitando-as assim a formas adicionais de violência psicológica que também podem constituir tortura ou sofrimento cruel ou desumano”, completam as relatoras.
Jamil Chade
Colunista do UOL